terça-feira, 14 de julho de 2009

Carta

Sempre fui um homem dono de mim mesmo. Sempre tive muito bem definido tudo em minha vida, meus objetivos e meus planos. Até o caminho para o trabalho é o mesmo de todos os dias. Para que fazer diferente se tudo está bem? Rotina, ao contrário do que muitos pensam é sinal de que está tudo bem. Tanto que quando acontece algum imprevisto, eu logo relembro meus rituais cotidianos e sinto saudades.

E de repente tudo começou a escapar do meu controle de forma inexorável. Não sei mais dominar minhas emoções. E ela, a razão da minha inquietação sempre aparece de forma inusitada, causando turbulências na minha vida, outrora, tão pacata. Ela não diz nada demais, somente me olha, um olhar demorado que parece me analisar por dentro, desvendar os labirintos mais íntimos do meu ser.


E quem diria que uma menininha dessas me desarmaria assim? Deve ter a metade da minha idade. Talvez nunca tenha viajado, sequer saído desta cidadezinha. Mas ela é assim, um olhar faceiro e sorriso com covinhas do rosto. Sempre metida numa calça jeans e blusas que mostram os ombros, de sorte a causar oscilações no meu pensamento. Ora eu desejo colocá-la no colo e protegê-la de todo mal desse mundo torpe... ora ela me desperta desejos loucos... de possuir aquele corpo sagrado e fazê-la só minha.


Mas uma verdade, eu enfim, admito. Nada me causa mais receio, mais estranheza que este momento da minha vida. Já tive dias parecidos, como no meu primeiro dia de trabalho no serviço público e como no dia do meu falido casamento. Mas este está sendo único! E sinto um misto de aflição com paz. Uma paz que vem ao meu encontro por poucos instantes. Quando eu admiro o sorriso dela, e claro, aquele olhar enigmático. Olhar de quem deseja, mas não quer, de quem provoca, mas se esquiva. É ela... A menina dos meus olhos.

E agora este impasse diante de mim! Um impasse que não era para ser, mas, tornou-se nem sei por quê. Nada me assombra mais e nada me seduz mais, do que esta cartinha que ela deixou em minhas mãos ontem à tarde, para ser entregue à minha filha, que eu vou buscar no fim de semana em Belo Horizonte. Dormi já era madrugada, com a carta no criado ao lado. Acordei, coloquei-a no bolso. Não, eu não teria coragem de devassá-la assim. Violar uma correspondência alheia. Pensei no olhar assustado de minha filha, que certamente descobriria meu crime. Pensei, ainda que, de uma vez por todas, aquela a quem eu endereçava meu pensamento, meus sonhos, iria faltamente descobrir minha paixão secreta.



Joguei a carta em uma gaveta e pensei comigo, ‘não vou me atormentar por essa bobagem’. Imagine só o conteúdo dessa cartinha. Devaneios de duas jovens de vinte anos. Depois do trabalho resolvo meus problemas no barzinho. Quem sabe não me aparece uma mulher da minha idade, experiente e predisposta a uma aventura casual?


Mas e a cartinha... Cartinha perfumada. Cheiro de flor. Flor colhida de manhãzinha. Muito diferente da frieza dos e-mails e das ilusões dos telefonemas, que nos dão a sensação de proximidade, mas no fim das contas só nos separam das pessoas.



Já a cartinha perfumada tem a letra dela... Tem os pensamentos dela todos condensados em um pequeno pedaço de papel. Certamente ela deve ter muitos pretendentes. É claro. Quem passará despercebido a tamanho encantamento? Um anjo com olhar provocante. Uma flor que me derrotou. Agora vejo-me escravo do seu perfume, prisioneiro nos seus espinhos, envolto para sempre em suas pétalas aveludadas. Minha flor prímula*. Sinto-me cansado, de tanta vontade de te ver. Só posso, agora que estou definitivamente enfeitiçado, declarar-me seu eterno devoto.


Perdido em meus pensamentos me esqueci que a carta não me pertence. Sem que eu pudesse perceber e me freiar, agora ela está aqui, aberta, devassada, diante de mim. Acabo de vencer o remorso e o pudor que as convenções me incutiram ao longo da minha vida. Meus olhos agora acabam de ganhar vida e luz. A primavera chegou em mim.



Amiga,


Estou apaixonada por um gato grisalho!!! ♥♥♥



Yasmin ♥●•٠·˙












*Prímula é a flor que símboliza a juventude.